Tuesday, April 18, 2006

walk inside

uma calçada longa, mas não muito. quase quarteirão basta. é preciso que tenha uma ou duas ruas para interromper o ritmo dos passos e atravessar rumo a algum destino que nos traga de volta. mesmo que isso rompa o conceito de quase quarteirão.

os muros tem de ter equilíbrio entre vazados e totalmente fechados, para guardar e estimular a essência do mistério. grandes habitações revelam-se não muito apropriadas para acescentar valor a esta calçada. fica-lhe melhor casas simples, casas comuns, com um ou outro detalhe, como uma casa que tem outra casa dentro de casa ou um velho automóvel sob uma lona que nunca vemos funcionar muito emobra esteja aparentemte bem conservado. sim, o automóvel é velho, mas não é uma relíquia, tampouco uma velharia. é apenas um automóvel com duas ou tres décadas de permanência, não se sabe se sempre na família.

nos vazados, há jardins por todo um quintal e quintal que substituem totalmente os jardins. há pequenos aclives e declives. o resto da marcha se faz em planos confortáveis. mesmo quando chega o vento do outono e a temperatura desce ainda que o sol permaneça.

convém que se tenha algo a fazer, como comprar o pão por exemplo, que acaba por ser mais significativo do que discorrer sobre a calçada para simplesmente tomar um café.

muito embora não seja obrigatório, há que se ter um certo vagar e um nada por fazer tão urgente para valorizar a calçada. e o saco de pão deve considerar um certo número de cachorros nas casas de muros vazados ou de grades. convém esmigalhar o pão com antecedência, explicando que aquilo que antecede este procedimento, é o latido de três cães pequeno-médios, um deles sendo mais pequeno, para além de uma casa vizinha, onde se perde a conta dos pequenos.

entre os cães, um vira lata negro, de mancha branca, comum ao peito. de incomum ohos azuis quase estrabicos, efeito proporcionado pela largura de sua cabeça e o afilado de seu focinho.

diariamente latem muito e parecem afugentar qualquer manifestação de carinho. como a calçada não é mais que um quarteirão e como todo dia comemos pão, a repetição se encarregará de aumentar-lhes a ferocidade, de cão pequeno-médio em trio, sendo um mais baixinho e gordinho, ou de aplacar-lhes os rosnados, o que invariavelmente vou fazendo aproximando com cuidado o pulso para que o farejem.

ainda que precise, e seja mais gostoso, convém não alternar os horários de passagem para compra do pão fresco. até porque pela manhã dormem e sonolentos dão a falsa ilusão de desinteresse ou amizade quase conquistada.

miolos de pão a mão, por cima ou por entre grades, considerando, que estão ao nível da nossa quase cabeça. e que a extensão é de aproximadamente 12 metros. há que se ter também habilidade na distribuição certeira dos pedaços para que um não coma mais do que outro e que isso não gere antipatias ao gesto e, pior, brigas entre sí.

isto feito, já na próxima, ainda que sem sacos de pão, no plural, porque num há pães de trigo, noutro, doces, de coco, os três mosqueteiros, chamemo-lhes assim, já se levantam e mudam os seus latidos e posturas, com menos intensidade no marrom de boca mais vermelha. já lambem-me os pulsos, ainda que o de boca vermelha o faça com um certo ar de querer mordiscar-me a mão.

não mais que um mês. ontem, na ida, todos lamberam-me já as mãos. e eu nem trazia nada nelas. na volta, todos contentes reconhecendo os sacos, um com pães de trigo outro com doces, de creme com coco.

o preto, de olhos azuis e manchas no peito, fica totalmente serelepe com a visão do saco. e o baixinho, já manhoso, só quer mais afagos, sob a guarda do mais renitente, de boca vermelha, que mais uns dias e comeria já na mão.

afago-lhes e não lhes dou o pão, apenas um olhar de partida. estou indo embora. há dias em que eu trocaria o amanhã por uma calçada, uma calçada longa, mas não muito. quase quarteirão basta. é preciso que tenha uma ou duas ruas para interromper o ritmo dos passos e atravessar rumo a algum destino que nos traga de volta

2 comments:

Anonymous said...

meu deus, celso muniz. nunca vi alguém ter sentimentos tão profundos por cachorros. talvez porque nunca me interessei em conhecer os sentimentos de quem faz essas atrocidades como comprar pão pros cachorros, eu tinha uma amiga que fazia torta de maçã pra a dela. cadela. rs

mas eu tive um cachorro como toda criança normal. ela era bonita, mas se chamava feinha. só porque tinha um olho azul e outro marrom e andava torto. é claro que nós não tinhamos grandes contatos táteis e/ou afetuosos. a não ser nos banhos com sabão de coco na mangueira. :)

Anonymous said...

É bem assim, os rituais que nossos cachorros criam com a gente fazem a gente nunca se atrasar, nunca cansar e principalmente nunca decepcioná-los.

Não tem coisa mais triste quando esqueço de comprar o osso diário da Peteka e vou trabalhar deixando ela com um olhar triste, um olhar de "mamãe esqueceu de mim".
Amo estes rituais. Os cachorros precisam deles assim como nós.

Lindo texto! Renata