Thursday, May 28, 2015

cheio de marra(ao carlinhos)
























lá pelos anos 60 - o tempo passa meus senhores, ainda que a frase permaneça a mesma - marra tinha outro significado. 

em nada parecido com o que tornou romário ainda mais conhecido, ou seja: invocado(diz-se no popular ivocado - mas não de ivocar - suprimindo o n em nome da eufonia ou lá o que seja), espoleta curta, que não leva desaforo pra casa, bateu-levou, cismado, irritado, e assim por diante.

ser marrudo, ou seja ter marra, era ser forte. não havia o bombado. aliás nem academias como conhecíamos hoje. havia,no máximo, academias de boxe e de fisiculturismo(aquela coisa que tornou o schwarznegger tão popular, apesar do nome insoletrável até mesmo pelo mais habilidoso soletrador.

e tem mais; os músculos, muitas vezes lado direito maior que lado esquerdo ou vice-versa, eram obtidos na maioria das vezes por " marombas " (que hoje chamam-se alteres) feitas com latas de leite catadas no lixo, preenchidas com cimento e pedras(portanto desiguais em peso, dai a predominância de um lado ou outro) e ligadas por um pau de cabo de vassoura (uma temeridade pronta a partir-se na próxima elevação), e cujas ferpas ou farpas, que muita gente chama de "felpas" (quem nunca teve uma felpa encravada na mão por manusear alguma madeira sem aparo ?) davam inchaços e pustemações cri-cri, como souvenirs da atividade.

tudo isso é nada diante do significado maior do "eu tenho marra", que ia muito além do ser forte para uma anatomia infantil, que na maioria das vezes era perseguido ou idealizado pelos meninos pobres da rua - sim em nossa infância havia meninos pobres em volta, pois não haviam condomínios - que sempre que confrontados faziam esta pose da foto(na verdade com os braços em arco para acentuar os bíceps e disparavam:

" aqui é marra rapaz. é mingau de cremogema", coisa que por certo nem em sonho eles puderam experimentar.

convenhamos: estes meninos eram mesmo os mais fortes. se não do físico, do espírito de não se dobrar ou inferiorizar ante a magreza gritante da sua miséria, que não lhes autorizava marra mas que mesmo assim as exibiam perante os outros que viviam no mundo abastado da cremogema, da maizena, do arrozina, do mingau(ou papa) de aveia quaker. 

são estas crianças, cuja miséria ainda assim não lhes adormeceu o sonho, apesar de lhes conferir a barriga chapada pelo cola-tripas da quase ausência total de alimentos, e que ironicamente tantos querem em luta perdida com o excesso de comida,  que consagrarão a marra de viver; nos dois sentidos. algo que anda tão em falta perante a falta de cremogema humana que se manifesta entre as crianças segregadas do sonho e da realidade da convivência diversa e imensamente mais rica pela multiplicidade de classes, tudo por conta de uma geografia arquitetônica destinada a matar de fome os sonhos e possibilidades de ser uma criança verdadeiramente forte para além da "papa feita".

hoje, confrontando-me ao espelho, com a barriga proeminente, a um passo de tornar-se caída, e sem ver uma costela de brinde que seja, recordo o carlinhos com suas costelas à mostra (todas sem exceção) a suster a respiração com um esforço sobre-humano para mais uma vez exclamar: "aqui é marra rapaz. é mingau de cremogema". e não há o que contestar: o carlinhos era mesmo o mais marrudo de todos nós. 

oxalá, ele não tenha perdido a marra - não a da fome - mas da sua força de não aceitar a inferioridade e buscar a igualdade, quando não a superação. ainda que fosse como fosse a base do "mingau de cremogema" aqueloutro que vem em outra embalagem e que permite que mesmo quando o da panela não existe, que exista o sonho do menino que preencherá panelas com mais sonhos ou como um sonho a ser realizado para todos que ainda assim exclamarão: "aqui é marra rapaz. é mingau de cremogema".

Monday, May 25, 2015

hoje, nem paris escapa

Quando cheguei ao Brasil, a nossa cultura olhava para Paris, os filhos dos senhores haviam estudado na França, embora os pais viajassem para Marselha em companhia de vacas leiteiras, a garantir a qualidade do café da manhã. Logo nos entregamos ao exemplo dos Estados Unidos, e com esta escolha erguemos uma caricatura. Foi o primeiro passo da desgraça, estética, se quiserem, a qual não é de modo algum secundária, a alimentar e fecundar provincianismo, ignorância, insensibilidade, mau gosto, arrogância, bem como inúmeros recalques. (O momento que atravessávamos não é inútil, ao menos é revelador.)

excerto de "meu pai se enganou" http://bit.ly/1SyczxM  do mino carta, em editorial para a carta capital, que vale a pena ler por inteiro. 

Sunday, May 17, 2015

último gole

numa homenagem póstuma ao b.b.king estava lá a legenda sob uma foto poderosa do king e sua lucille:ninguém que viveu 89 anos foi uma pessoa só ", referindo-se as diversas nuances do b.b. demarcadas em fases diferentes da sua longa vida.

bom, não acredito muito, no quesito longevidade, mas espero que se chegar aos 89 anos seja uma pessoa só. no sentido lato e estrito.

não serei mais ou menos triste por isso. não sou afeito a estas definições amargas da solidão na velhice: só é só e somente só quem não aprende que a vida é solidão delegada que assim é vivida justamente por não deixar-se ser um só). por isso, quero conservar-me inteiro, e de trincas apenas as que os anos terão e irão causar, sem que com isso queira dizer que fui um rochedo que jamais tremelicou.

acontece que num mundo que tudo e a todos muda, e que cobra a mudança como uma coerência benfazeja - enquanto a não mudança é vista como pura e burra teimosia - creio que haja algo de muito bom em não mudar, caso contrário não estariam todos incentivando mudanças à torto e a direito. sempre escudados na peremptória frase do "muda para melhor", que é a falácia na qual só os arrivistas acreditam - enquanto tudo a sua volta vai mudando copiosamente inclusive a sua maneira de ver o mundo, principalmente por conta da inevitável falência dos sentidos, assim espero, e não por mudanças do ponto de vista político e existencial, tais como renunciar a ser de esquerda, por que a esquerda esta na merda, ou aderir a direita porque é mais hoje "politicamente correto" no convívio social(eu não aconselharia você a ir a uma churrascaria e em alto e bom som declarar-se socialista - em compensação se disser que é socialista cristão ou de qualquer uma destas modalidades eleiçoeiras oportunistas não mais lhe enfiarão a calabresa cu a dentro e é bem possível que lhe paguem a sobremesa(a calabresa cu a dentro é exclusiva dos socialistas à rigor;)

isto posto, ser um só e estar um só é cada dia mais um privilégio que poucos aprendem a absorver e desfrutar, num mundo de efervescências tão consistentes quando suco em pó e onde as redes sociais revelam o homem na sua estupidez social e o quão rasteiro ele tende a ser quando a histeria da mudança esconde a mais importante - jamais feita - e revela a torpeza de todas as outras. tudo sempre na base das frases do tipo "a natureza ensina a mudar" ou só os tolos não mudam de ideia". parece-me que a natureza, pelo menos hoje em boa parte, foi estuprada a mudar por muita gente que hoje já começa - por medo ou de novo por oportunismo econômico - a querela imutável no sentido de não esgotamento de seus recursos e do mau humor que se revela nas mudanças climáticas decretadas por quem mudou - interesses econômicos - nosso modo de vida.

a vida que é de um ser só e de um só ser, é tal e qual como sorver um vinho especial(a esmagadora maioria jamais viverá este momento) que leva um tempo enorme para assim o ser(e sem mudanças) para que desta forma, no exato momento em que ele começa a ser bebido e em cujo "néctar" reconhecemos o seu verdadeiro sentido, começa ali mesmo a se acabar, tal e qual como foi vivida uma vida de quem foi um só como única ela deveria vir a ser.

quem viver muitas vidas, certamente viveu muito mais a vida dos outros e não a sua. uma vida que se tornou assim por dizer uma vida de refrigerante, repleta de gases por dentro e por fora.









Thursday, May 07, 2015

quando uma coisa inútil pode ser boa pra cachorro *

qual é a utilidade da literatura ? e do amor ?



Alguém pode me dizer qual é a utilidade do amor? Até hoje ninguém me convenceu. Ele, o amor, é inteiramente inútil. Como a vida. Não tem utilidade. 

Penso nisso quando tenho de ouvir umas pessoas dizendo que literatura é uma coisa inútil. Sou obrigado a concordar. É inútil. E nestes tempos brabos em que as mentes já andam impregnadas de utilitarismo, inútil vai assumindo uma conotação pejorativa. Mesmo assim, concordo, a literatura é inútil. 

Apesar disso, continuo lendo, e cada vez com maior paixão. E continuo vivo nem sei pra quê. Literatura, eu disse em uma palestra, é tão inútil como ter filhos. Alguém da plateia, inconformado, alegou que filhos têm utilidade, pois podem trabalhar. Saí do embaraço afirmando que se têm utilidade já não são mais filhos, são mão de obra. Utilidade, no sentido prático, nem o amigo pode ter. Se tiver, deixa de ser amigo para tornar-se ajudante, ou qualquer coisa parecida. Nem todos tiveram o prazer de ler Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Aquele final fabuloso, em que o mestre carpina não consegue justificar por que continuar vivo. “.../mas se responder não pude/à pergunta que fazia,/ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva.” Tinha acabado de nascer um menino. 

Ocorreu-me o poema ao ouvir a história de um amigo que tem uma cadela. Uma cadela adulta a quem jamais foi permitido o amor: ela vive confinada e sozinha. Há pouco tempo meu amigo ganhou um filhotinho de cachorro e ficou com medo de que sua cadela o estraçalhasse com uma bocada só. A cadela mostrou-se muito impaciente com os exercícios de aproximação que recomendaram a meu amigo. 

Enfim, vencida a primeira semana de parcimonioso convívio (de cheirar o pano sobre o qual dormia o filhote até deixá-lo ao alcance da cadela foi um bom tempo) o filhote foi entregue ao canil, ao alcance da cadela. Sua companheira cheirou-o, deu umas lambidas e se afastou como quem diz: Já conheci, agora chega. Pronto, a aproximação fora concluída com êxito. Não sem medo, claro. 

À noite muitas coisas acontecem, as noites costumam esconder mistérios. Mesmo assim, e com bastante dificuldade, meu amigo deixou os animais entregues a seus próprios instintos e foi dormir, que ele também é gente. No dia seguinte, o dono dos dois caninos foi conferir o resultado da manobra. Deitada, a cadela era sugada por uma das tetas. Sem acreditar no que via, meu amigo pressionou uma teta desocupada: saía leite. Sem pensar em utilidade, a cadela estava protegendo um ser vivo.

(uma coisa inútil, crônica do menalton, menalton braff, na carta capital)

+ imagem de http://notonappstore.com/ um projeto bom pra cachorro da sueca linn wexell e dos brasileiros caio andrade e rafael ochoa (dê uma passadinha por lá também)
* originalmente publicado no bompracachorro.blogspot.com