Tuesday, April 18, 2017

no seu "cântico negro, régio este josé *


“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu te
nho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
*José Régiopseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, (Vila do Conde17 de Setembro de 1901 — Vila do Conde22 de Dezembro de 1969) foi um escritorpoetadramaturgoromancistanovelistacontistaensaístacronistacríticoautor de diáriomemorialistaepistológrafo e historiador da literatura português, para além de, fundador, editor e director da influente revista literária Presençadesenhadorpintor, e grande conhecedor e coleccionador de arte sacra e popular. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Tem uma biblioteca e uma escola secundária com o seu nome em Vila do Conde.
Com o livro de estréia — “Poemas de Deus e do Diabo” (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos. Cântico Negro é considerado, por alguns, seu mais belo poema.

Nota do blog: encontramos diversas interpretações do poema. entre tantas, a do próprio autor, a de joão villaret, maria bethânia(versão 1982 e mais atual) a de paulo gracindo e outros "monstros" conhecidos. optamos por postar aquela que foge do over-acting(caso de villaret, que muitos confundem com gradeza emotiva)que costuma açoitar os declamadores. às vezes, aqueles que nos falam mais baixo é que nos fazem escutar mais alto. nem sei se este seria o caso, mas é fato que nesta versão, o poema, o poeta, e não o declamador, sem demérito para o próprio, assim o fazem, pelo menos aos meus ouvidos moucos a tantos outros gritos.

Thursday, April 06, 2017

talvez\o imperador do nada



talvez escreva canção \como se deve\ ou como não se deve\ mas canção onde se saiba\ que o talvez nunca deve nada a ninguém

talvez na canção\ amor se descreva bem\ no corte onde se inscreve o talvez\ tão displicente ao tempo\ tão descrente ao vento\do que lhe traria um tanto\ talvez que tanto talvez\ amor tenha preferido ir embora para pasárgada\ bem na hora da sua tez

talvez escreva canção\ para alguém de voz pequena\que seja\ contanto que de pequena louça\de pequena poça\pequeno vaso\ talvez açucena\ da apenas flor\ falsetes bálsamos\que não há caule para graves e agudos de si tão enfastiados\ joanetes nos fa(r)dos e nos tangos\versos esculpidos e escarrados de mesma dor \

talvez de poucos acordes\ canção\ que desperte mais que um toque\ um certo roque\ sem  talvez nem por quê \apenas canção para os que até cantam bem e nada tem\ 

talvez\escreva canção\ sem vez\sem sal\ sem açúcar\sem olhos\e sem boca\ apenas tal e qual\ rosto disforme em verso e prosa \ reverso de quem foi meu bem\e chega de ferida calo\ tanta planta outra\ no teu rasgo\ não importa a quem\que a canção\que mente ó poeta\ desmente\ a semente do para sempre\e do momento demente\ para além do pente\ ou da ponte zen\

talvez escreva canção para lembrar\ o que se deve\ ou o que não se deve\ ou talvez escreva canção apenas pra lembrar de esquecer \quem sabe\ um dia\talvez sim\ talvez não\talvez nunca\ pra quem talvez chegue\ pra mim chega de talvez