Saturday, July 28, 2018

por entre orelhas

bibliothèque nationale de paris

o conhecimento não nos traz a felicidade (pessoal) como seria de se supor ou apregoa-se por aí. 

há quem diga que na ignorância se é mais feliz, ou na extrema inocência, como o de uma criança e seu sorvete. mas sem dúvida, o conhecimento nos permite entender as causas das tristezas e mazelas (sociais), e isso pode nos trazer ainda mais infortúnios (como ser feliz em meio a tanta infelicidade?) (a "maioria consegue"). até porque, nossas tristezas particulares, nos revela o conhecimento, nem sempre são tão particulares assim. 

de forma que, ainda que nos seja doloroso, o conhecimento, nada é mais doído ou triste que ser, seja o que for, feliz ou triste, sem saber realmente o porquê. mas quem se importa? 

afinal, para maioria dos humanos, sentir (ainda) é mais importante do que compreender(mas se pode compreender sem sentir? - a filosofia diz que sim - ) o que nos reduz a outras espécies(mas sem a habilidade deles).

e quando finalmente compreendemos isto, na maioria dos casos, resta-nos não muito mais do que o sinto muito.




Monday, July 16, 2018

sol à pino*


numa célebre ponte histórica do recife, atravessou-a ligeiro; e já na cabeça da ponte lembrou-se, não sabe como, a sua andava uma merda, que saíra de casa sem documentos. voltar tudo aquilo, puta que o pariu! calor sufocante, suor escorrendo em pingas, gente feia e mal cheirosa a lhe atrapalhar os passos, chutou as pilastras e bradou isso é uma tabaca de chôla. mediu a distância entre uma cabeça e outra da ponte e quase chorou de tanta raiva da distancia hiperbolizada pelo sol à pino. caralhos me fodam! voltar um carai, nem que se foda. e pulou na frente do ônibus, que lhe petelecou a bunda, projetando-a sobre a murada, fazendo-o cair de cabeça na lama fétida do rio. desemborcado o cidadão, repetia quase afogado, voltar um carai, cuspido de lama em plena bosta de rio. populares prestativos e bombeiros amuados convergiram. surtou e foi de gaia. de cima da ponte um bando de cornos mansos amontoava-se sob um sol à pino para apreciar a teimosia alheia.

*originalmente publicado sob título de numa certa ponte histórica do recife, em 19,11,2007.

Friday, July 13, 2018

pé de página *


sim, os livros são uma janela para o mundo. mesmo quando se dá as costas a ele, ao mundo e, nalguns casos, até aos próprios livros, depois de lidos ao desprezo. 

creio que há livros que não se esquece jamais, pois estamos dentro dele ou ele dentro de nós, ainda que esqueçamos quem os escreveu e até os personagens ou o conteúdo não ficcional. 

mas para alguns as janelas do mundo permanecerão fechadas para sempre. principalmente para os leitores de um livro só - a bíblia principalmente - ou o capital que seja, ou o decameron ou a ilíada, ou ulysses ou o arco-iris da gravidade. 

e atenção: por mais bonita que seja a arrumação da biblioteca, livros são para serem desarrumados. só assim desarrumam o pensamento que se quer sempre em pezinhos de barro. sim, ao contrário de quem pensa, muito ou pouco, muito pelo contrário, livros são "para confundir e não para explicar". pois o mundo explicadinho, convenhamos está se transformando nesta merda que vivemos. 

portanto, leia, desarrume, desaprenda e faça de novo, e de novo, até não precisar do rascunho dos outros no de dentro para fora ou no de fora para dentro dos livros.

publicado aqui mesmo em 09 de novembro de 2014*

Monday, July 09, 2018

um olho no prato outro no humano *

um fundo de garrafa pet mal cortado. o suficiente para que seja improvisado um comedouro para que o gato sarnento de rua faça as refeições que lhe propus dar.

nada demais, eu sei. no espaço das calçadas fronteiriças, sempre que saio ele está lá. vigiando cada vez mais os meus passos, e dando-me bom dia quando saio, ou boa noite ou madrugada quando chego.

o gato de pequenos olhos amarelos tem linha. black-white, se não fosse a sarna a altura do pescoço, que lhe deixa quase parecendo um galo em petição de miséria. seria uma pérola em qualquer sofá de cobertura.

penso que se tiver acesso a alimentação, que não seja provida azeda ou quase-podre pelo lixo, sua sorte pode melhorar. não há de alcançar o sofá, mas alcançará mais rápidos muros e outros roteiros de fuga. já que na vida de rua, olho vivo sem forças, não basta para sobreviver.

com o gato aprendo que existe algo que não melhora. não a sua sarna, mas a enorme coceira humana em sua sina de sarna. já perdi as contas das vasilhas que andei a cortar, para improvisar o tal vasilhame, onde o tal gato possa se alimentar. mal as coloco, e sempre tem alguém a chutá-las, despejá-las, roubá-las, enfim: desaparecem como se o destino raso a que se lhe destinam agora fosse algo mais importante do que matar a sede e a fome do gato, que tem linha, apesar da sarna, coisa que decididamente os humanos, adultos e crianças, que somem com as vasilhas, não tem.

para não perdê-las, fico de vigia, e o gato, que aprende rápido, como se já não soubesse o que é o dejeto humano após tanto tempo na rua, come o mais rápido que pode, para tentar salvar o pescoço: um olho no humano, outro no prato.

um simples vasilhame de pet "malamanhado" acaba sendo o portal revelador de quem é quem neste mundo de chuta-vasilhas sem nexo. o gato sarnento que tem linha, e que não a perde - mesmo sabendo que sou eu que lhe ajuda, e que não chuto, nem vasilhames, nem gatos - mantendo a distância, alertando-me, para evitar o contágio com os sarnentos sem linha, que indubitavelmente são os humanos;e não o gato que, ainda que sarnento seja, o é de outra espécie.

publicado aqui mesmo em 08\11\2008

Tuesday, July 03, 2018

bom dia*


as portas da padaria, o cão vira-lata aguarda alguém que lhe seja capaz de dar bom-dia, com um pedaço do que seja pra comer.

contemplo-o antes de estacionar. de porte médio, pelo castanho, olhos caramelo, tem mesmo cara de gente boa, e já me ganha de saída, ou melhor, de entrada. se estiver aqui ainda quando eu sair ganha uma festa e um pedaço do meu café.

adentro a padaria para o habitual. o de sempre, confirma a moça do outro lado do balcão o que confirmo com um aceno - o de sempre é uma vitamina de banana, pão com ovo e um café médio sem leite (já basta o da vitamina).

do assento do balcão, que mais parece assento de guarita, elevo-me a condição de observador privilegiado de todos que estão dentro da padaria naquele momento. são cerca de vinte pessoas, entre crianças, adolescentes, um pouco mais, maduros e gente quase senil. nenhum deles tem um sorriso na boca. sequer naquele começo de manhã ensolarada. muito menos os empregados.
guardo pouco menos de um quinto do pão com ovo que é ainda um pão francês avolumado.

pago a conta e dou ao cão, esta altura já com crise de consciência.
pela espera, rabo abanando, e aquele sorriso de bom dia que só o otimismo de um cão enxergava naquela manhã, apesar de ser um cão de rua, merecia tomar café no meu lugar.
mas claro que num lugar onde os sorrisos estivessem a altura do sorriso largo do seu. bom dia de cão, que era muito maior do que de todos aqueles de uma padaria inteira.

*originalmente publicado aqui mesmo em dezembro,12,2007.