Saturday, October 07, 2006

pelos raios da bicicleta

nunca mais pensei em poema

ando tão atarefado
no trânsito veloz das palavras avenidas
aquelas dos artigos, das críticas, das tentativas malsãs de escrita
das réplicas e tréplicas sem fim
no fundo todas palavras com fitos inúteis
que fiquei sem tempo de esgueirar-me pelos becos e ruelas da poesia
nas quais não perambulo faz tempo
acanhado e distante
como um menino cheio de lombrigas na barriga
justamente cólicas na hora do recreio

descubro mais uma vez o que sempre soube
a poesia não gosta muito destes espaços largos em que ando metido
trata-se de uma espécie de agorafobia preventiva
que a faz evitar significados demasiados amplos
em troca da dificuldade valiosa de transitar
pelos espaços estreitos e abandonados
em pleno coração da cidade
apesar de tão cagados, tão mijados, tão descaracterizados
tão irremediavelmente prostituidos e descarnados
tão violentados pelo esquecimento das lembranças que não nos tem acompanhado

mais do que metafórica é periférica a poesia
tem fome de conteúdos como bicho de pé
vai fundo comendo pelas beiradas
abrindo suas estradas de pé em pé

por isso evita automóveis e adora calçar sandálias em têrmos
pois como senão a pé
contar-lhe-ia os paralelepipedos da rima?

a pé para chupar uma fruta, um “ picolé de tinta”
uma maria-mole
um doce de batata cortado por espátula
no tabuleiro que nunca foi lavado
marcando sabores como um travo

emoção de chutar pedras nas calçadas do bairro
puxar o rabo dos gatos
e escorregar pra debaixo das saias das meninas
que dão gritinhos de sabores diversos ante o intruso dilatado

aí a poesia se derrete
e tinge as palavras com sabor de infância naquele picolé derretido na essência de morango
que outrora diluía o sangue do machucado no joelho

no máximo a poesia segue de bicicleta e pede um verso emprestado
aquelas que levam meninos no bagageiro, compartimento de mercadorias tão díspares como bojões de gás e a cabrita arrematada no fim de feira, sacrício para ambas as partes

no meu bagageiro fardo de sentimentos
farnel de sabores outros
já que ando meio destrenado
nas pedaladas ladeira acima ladeira abaixo
catraca da poesia de viver contando os meus próprios passos

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