Sunday, March 05, 2006

dicionário analógico da língua portuguesa

portugal me é um rombo da base do pescoço a púbis.

nele cabem
lisboa e
ponte 25 de abril
até em hora de ponta

cabem a costa da caparica
o atira-te ao rio e os barcos do barreiro

cabe também o balanço do vôo da tap
e quase não cabe o grito de quem se assusta e brada: esta merda abana mas não cai - foda-se! sempre abana após o passar da ponte

cabe a estrada para o algarve
nem precisa chegar lá.
porque cabe uma açorda de coentro
na cidade mais comunista do roteiro

mas vá lá,
tá-se bem, cabe o algarve
praias para inglês ver
e português desatinar

cabem uns copos no jamaica
onde descubro que ainda sei dançar
cabe o bas-fond e o largo do sodré
e a padaria que vende o melhor pão tigre que jamais comi

o comboio pro estoril
cabe o salto em cascais
para retornar à rua da beira baixa
cabe o maluco - os rafeiros cabem sempre -
cão que nunca soube de quem
não sabia ele nem eu
ser meu também
de quem guardo fotografia
única do rombo

cabe o marquês
e o trottoir do eduardo sétimo
cabe o cheiro das castanhas
até bairro alto cabe mesmo de dia
cabe o rato e para sempre campo de ourique
e cabe jardins da gulbenkian e corte inglês
(coube até as passeatas contra)

cabem todas as tascas e até o lux
onde quase não cabia ninguém

cabem compras no supermercado
das amoreiras
pra comer banana
no shopping
enquanto devoro leituras
pensando num expresso duplo

cabem as caminhadas solitárias
em quaisquer das cidades por onde andei
e me reconheci feliz mesmo quando não

cabe super-bock, fino e imperial
na ribeira
que porto chego já

assim como cabe
meco
contagiado
pela alegria portuguesa
na estação do sol
tanta alegria
que nem sinto falta
dos biquinis brasileiros
pois aprendi a
ler nas entrelinhas
dos biquinões

embora ainda ache top less dispensável
não por falso moralismo
mas porque são um atentado à imaginação

cabe a alegria de caminhar sob a chuva
mesmo no inverno
declaração de liberdade
onde nem brasileiro
nem português
apenas
homem
menino nu

ainda mais
no meu porto
onde cabem todas as salas da amc
as francesinhas da santa catarina
onde até cabiam travestis e as putas
retirando pinturas na mesma hora
em que acabo mais uma noitada

cabem as poucas horas de sono
nas madrugadas de volta à vila do conde
cidade irmã de olinda onde estou

cabe
ida e vinda
e até a pachorra
de aguentar o reninho discursando

cabe do granizo das madrugadas
as pataniscas de bacalhau
e convida-me
quem nunca me viu
cabe o café com perfume
brinde de mãos calejadas

cabem todas as fnacs
e até o norteshopping

cabe a foz
e a minha voz
tentando pronuncias do norte
com sua simplicidade
enorme
fonte de vida
e sabedoria

onde aprendi
que não conservamos tudo o que amamos
ainda que conserves na memória o que cabe
do que já não podes

cabem em mim
até os erros de concordância
que riem de mim
junto com os tus que não batem com os erres

mas não cabe o quartilitro de vigor

a isto chama-se saudade
o que não cabe em si.

(originalmente publicado no cemgrauscelsius)

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