Friday, September 24, 2021

sopa de réstias ou no tempo que não havia tetra-pak


antigamente

dizia eu

quarta-feira é

quando a ferrugem quiser

e o gim garbotônico acabar



tinha eu borbulhas de adolescente

estouradas

clandestinamente

mal chegado à maioridade



quarta

é quando há lama da feira

quarta de se (es)baldar

depois de uma quinta à terça

semana raquítica de sensações

eu

sério candidato a esfomeado da unesco

resolvo que vou à vida

e troco as sandálias havaianas

por tiras incrustadas em lama e perfume de curtume

para pechinchar miosótis e diósporos que a minha mãe

depreende como caquis

me deixando vermelho de

arrependimento por nunca ter lhe oferecido uma flor

nem que fosse do mato



é quando eu me mato por ter morto o que podia

acontecer ou não acontecer

mas nunca se desintristecer

pelo abandono

as flores do mato

minhã mãe



mães de fato

conseguem ser milagrosas

e bonitas

mesmo sem

água

lagrimas que nunca

lhe mostrei

orvalho de manhãs

que ela nunca irá descobrir



talvez ainda houvesse tempo se não soubesse me esconder

nos retratos sufocados duma caixa que guarda o que

já não devia guardar e deixa escapar o que já não devia



quarta-feira santa

é quando o implausível acontecer

quando meus eus encontrarem os seus vocês

e nozes

cada um pro seu lado

assoviando clair de lune

encantarmos o vira-lata

que arrasta um osso de um animal outrora vivo

e que viverá entre dentes de outro

até sentir de novo o mastigar da morte

ou seria sorte?



ai será uma quarta de sorte

ou seria de morte?

assinalada numa esquina sem postes

que teve seus dentes arrancados

da pracinha das gengivas moles

como se fosse jujubas

elos mágicos

entre avós e netos

laços

entre o porém

e o toda via

amém

com todo o desdém

do nectar que eu pus



quarta- feira

de tarde chuvosa

lamaçal de aquarelas

furibunda natureza morta

das frutas que não furtei

morrendo moço meu coração de fruta-pão

fibrento e engordurecido pelo não do chão

que insiste em me suspender

ao som de coros de ganchos

e lágrimas de prostitutas

que descem em contrário

afogando olhos de meninas que já foram

malfadadas pela maquiagem barata

que fazia porcos golfar

e vagalumes acender



a quarta ainda está lá

apesar de eu não aparecer

porque a quarta que se foi

é a quarta que revolverá

à feira de todas as nossas vidas passadas

em âmbar



como desaparecer então celso

de sacola vazia

mãos a envelhecer

sem ter lambido um resto de réstia

nutritiva?

vá à feira que o pariu garoto

e recolha seu destino a faca

cortando da carne a carne que lhe falta



por sorte apenas por sorte

não ousava dizer merecimento

não sou hoje um repolho distendido

folha de couve que amarela trava

casca de laranja " roida " de rastos

beterraba sem cor

mas sou uma sopa de réstias do que não fui

e que jamais serei

a servir num prato de aparencia rasa

mas de profundas imensidões durmentes

a espera do trem das cores

de outras estações

entupidas do movimento dos barcos



meus tomates estão no sítio

tomate é ovo, sítio é lugar

em portugal ou no brasil é tudo igual

a caminho da feira

inda mais quando se está sem eira nem beira

e vem a dor de barriga sem o matagal



e apalpo abacates e meloas

como se apalpasse sedas

que serão desfiadas pelos pregos da lingua

da mesma língua que aveluda-se por paixões

que não levo para casa

embora as veja

em barracas que se desmontam ao fim da feira

como se desmoronam pares

rumo a um destino não muito melhor do que o meu



o destino de não ter começo nem fim

apenas seguir o calendário das feiras

que também acontecem aos sábados e domingos

até dentro de shoppings



mas a minha feira

mal começo que meu começa

e logo acaba sempre

quando não é de saída interrompido por alguma

fiscalização

que em nome da higiene sanitária esfrega água sanitária

nos meus sonhos fazendo-me lacrimejar água oxigenada

por dedos em púrpuras

a que faço juz



pelo menos sei que não foram espremidos em kombis

bate-porta

bate bôca

frieiras de outras mãos



recusei a comodidade de uma tal falsa felicidade em que

eu era

fruta de caroço

daquelas que entala no pescoço

e dilata a veia do marca passo

de quem nunca mais poderá sequer soluçar



eu quero é ser feliz de verdade

ainda que com a minha infelicidade

que é a felicidade sem coleira

a me acompanhar como sombra que não se molha

na feira da quarta-feira

que é a feira da semana inteira

de quem teve o domingo esfomeado

mas relutou na segunda e na terça

a molhar os pézinhos de lama

ou seria de fama ?



e vamos a feira das palavras

nunca mais como na feira de botafogo

que alimentava ivan santos e alex madureira

que lenine e lula queiroga não caiam na besteira

de sair da proteção de santa teresa

onde a vida em meio a curvas ainda parecia caminhar

na reta

da fome que ensaiava passos de bebedeira

agarrados com damas de forró e gafieiras

bate que bate dum omelete nervoso

de coxa com coxa

beiço com beiço

lençol com formol

formol com formal

formal com melhoral

melhoral com os escambau

canjas de outra natureza

a par de outra fome

oxente-mate

dum xadrez escarlate

camaleão

disparate

dispa

e é arte

artimanha

da manhã

que tudo

apressa

até o coito por um biscoito

do travesti do dezoito

que saltava do bonde andando

até o dia que perdeu a dentadura

e foi-se embora a sua aura

de criança pura

mais do que todos nós

que amargamos da calçada

a dentada desta revelação

metade entre risos

metade com a mão no siso



ainda assim

a vida era musical

e todos se dedicavam a poesia em dor menor

eramos ainda tão jovens para saber que o que doia não

era nada junto da fome que ardia

o que se revelou pra uns

um grande fiasco

pra outros um grande asco

trauma de nunca mais gostar de sopa

embebida dos restos da feira de botafogo



hoje

quem já foi meu irmão

até faz samba pra japonês ver

mas já não me reconhece em pleno verão

da platéia miúda de alguma cidade piscatória

que "lo(ro)ta" no porto



ivan foi visto na alemanha e na capa do último disco de

leinine

enquanto alex some na joão pessoa diáfana

cidade de estrelas proteladas

e almas dilatadas

pela ressaca do tédio

que na orla só pode ir até o quarto andar



lula está de volta

e aboia mecanicamente

quiçá escapou de fazer

filmes de publicidade ruins

impunemente

e eu

eu ?

me perco ainda hoje

sem saber o preço do travo

do que me custou

a indecisão de

nunca mais decidir

se pegava ou não pegava no violão

e em vez de mero transeunte

fazer da feira

meu ponto de cantador

e faturar com isso

senão um brocado de amor

trocados de outra cor



(oh! babe que outros cantores chamam baby ...)



lisboa , 19/21 de maio de 2002.

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