dos gatos da síria
e dos cachorros da somália
herdei
mais que estrondos
sobressaltos
são fatos rasgados a céu aberto
colchas de retalhos
com seus milhares de intestinos fora do seu destino
herdei também memórias esturricadas
de fatos e fotos jamais tiradas ou mostrados
nos tele-jornais e nas agências de notícias
que nos fazem mudar de canal
sem mudar o pensamento
há algo em mim de constante sobressalto
de eriçados pelos
quando me falam em humanos
seres que destroem a tudo e a todos
e não poupam vidas
sequer de crianças, bichos ou livros
pois neles não há espírito que louve a vida
mas tão somente a morte fútil em flashes de violência gratuita e destemperada
e a tudo isto constato
tão longe-perto
entre paredes não caiadas
tombadas ou arrombadas
agora tingidas de sangues
como se nelas houvessem veias rompidas
onde de nada adianta a correria
daqueles que se dizem, até quando? exceção,
e vão recolhendo restos de vida metralhada
ou fuzilada por bala ou míssil, bem maiores do que os corpos das crianças, e dos gatos e cachorros que atingiram
cuja única compreensão é o horror a tudo que move e fala e espia
nos escombros há também gaiolas pulverizadas, onde pássaros que já perderam o encanto de voar
foram exsudatos em explosões de cores monocromáticas
que lhes despedaçaram os bicos
que de há muito já não sabiam mover, que dirá, cantar
há qualquer coisa na guerra que os livros jamais poderão contar
tampouco sentir
quem não viveu a morte de estar lá
no meio de tudo isto
para depois se dizer sobrevivente
com se alguém pudesse sair com vida
disto que chamamos, eufemisticamente, de guerra
genocídio, extermínio ou que palavra seja de teor bombástico
para sempre abafadas naquele átimo de pele rompida as penas do passarinho
pelo vácuo da explosão
contínua da estupidez humana
que produz estragos irrecuperáveis nos seres que um dia julgamos ter algum tipo de alma
e que coloca em debandada insana latidos e miados para distante dos corpos onde se abrigavam
dos gatos da síria
e dos cachorros da somália
herdei mais que os sustos, o terror, o abandono, a fragilidade
a insônia, e a incompreensão
dos livros onde o conhecimento agora desfaz-se em meio ao pó
herdei as mãos tomadas em inchaços
os tímpanos rompidos
as patas calejadas
e uma secura na garganta
que chamo de impotência
ante a contemplação das minhas pegadas
que ja foram humanas
hoje sequer animais
desmembradas
numa explosão
de luz atrofiada
que me deixou para sempre
ressabiado
e assombrado
com a minha própria sombra
que me deixou lá atrás
cansada de tanto morrer
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