Sunday, February 05, 2006

nós em pingos d´água

eu sou o invisível que não desaparece. eu sou como a água. vamos, abra as comportas que eu me precipito, e transtorno tudo(apollinaire).

transformar páginas secas em superficies úmidas não é tarefa fácil não senhor. mas é o que fazemos intuitivamente muito antes do nosso nascimento, desde a umidade da criação da vida em oceanos pré-arcaicos até os dedos lambidos na viscosidade do endométrio da pessoa amada.

a água é uma construção que no H20, esconde um labirinto de milhões de seres a se multiplicar, a nos atemorizar, a nos salvar, a nos conhecer, a nos matar, involuindo e evoluindo ao sabor das ondas. são as mares tempestades do ventre e da mente ? e o corpo? o corpo é 90% água. e a água é tenra, é viril, é vil, é delicada, é monstruosa, é afável. a água é grega. a água tem varizes. a água alucina e acalma. a água é tudo-nada quando toca nossos lábios e nada-tudo quando foge por entre mãos dadas.

que seria de moisés sem a água ? só um atormentado homem de barbas brancas e tábuas sem salvação. salvou-lhe a água, que abriu-se e sabe-se lá porque razão assim como poderia ter desabado. queria ver ele segurar aquela onda.

a água é um diamante duro de nascer no fundo do olho. mas nasce com o brilho do olhar do homem no olho da vaca que nos corta ao já não se por de pé, porque ossos e pele precisam d´água. senão, como nadar no meio daquele deserto que é o mar da caatinga sem água ? e o céu ? não é o mar de cabeça para baixo ? talvez, mas sem água.
a água emoldura nossos desejos em nuances de peles molhadas dos corpos a bodybordear na praia. sem água não surtiriam efeito aquelas curvas náuticas, aquelas gretas, aquelas manobras, aquelas contorções, cores , tessituras. água é radical, brother. era a água que fazia a miragem rósea da minha geração de nas blusas coladas em tardes cinzentas nos seios pequeninos de bicos túrgidos das garotas matriculadas em colégio de freitas a nos enxotar. e o que não fazia a água que corria pagão o corpo das mesmas freiras tão pudicas também a nos contristar ? o espírito santo existiria sem a água ? primeiro a água ou o espírito ? sob a água curvou-se jesus aos homens, deuses, animais, crentes e descrentes em sua força. a força da água.

a água apaixona e amolece até os homens duros que deliram por suas carícias como os lobos do mar com seus lábios descarnados e mãos postas. a água fez brecht desembaçar os óculos após escrever “ do rio que tudo arrasta se diz violento. mas ninguém diz violento as margens que o comprimem”. e foram as águas do capibaribe que me fizeram conhecer brecht bem antes dos espetáculos de fernando peixoto. a água lava. a água leva. encharca, seca, ensopa. a água é onde está mergulhada a terra, que foi preciso guilherme arantes para lembrar o verdareiro nome do planeta água.

e da água vem a verdade. porque é soro. não é pau nem é pedra. e se água mole em pedra dura tanto bate até que fura, doem os meus olhhos comprimidos pela água que corre lá fora, chorando por mim em paisagens impossíveis de chorar se não fosse a água. não é o tejo o choro dos portugueses? e onde o tejo deságua ?

vertem água as pedras de minas. vertem água drunks londrinos até a boca da noite, que lá não se bebe a noite toda. tomando a água que eles mesmo passaram tanto tempo para retirar das highlanders de íngremes e pontiagudas boas águas.

a água é assim. a água é ânsia. a água é calma. ensina lições de humildade e grandeza, vitória e derrota, sem perder a consistência até debaixo d´água.

da lágrima sentida ao filete na vidraça. do afluente, que ninguém sabe o nome mas que faz o amazonas, que ninguém se lembra é soma d´outras águas.

água é pororoca. apollinaire. sorvete e tapioca.

água é palavra embora seca na rosa de quem conforta.

em água repousa a mágoa. água mal resolvida de águas passadas que movem moinhos de águas despedaçadas.

água é terra na holanda muito mais que na veneza aterrada. água é meu dedo no dique da alma tampando um furo do tamanho do meu umbigo que a vida logo desata.

água é a vida, escorrendo por entre estas palavras pra muito além da página condensada.
(originalmente publicado no jornal correio da paraíba, em 08 de julho de 1993).

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