Tuesday, January 27, 2009

da falta de visão ampliada


a presbiopia veio, como é de se esperar, por volta dos quarenta e poucos, o que é sempre muito pouco quando se vive de olhos abertos para o que vier.

a falta de visão para longe, mais tarde, dez anos depois, mais ou menos, a memória talvez já acompanhando a falta de visão.

acostumado, por formação - ou deformação - profissional a focar nos detalhes, e neles buscar, para o bem e o mal, a diferença, sem óculos, perde-se, por assim dizer, o distanciamento crítico. é o que acontece agora quando estou sem lentes.

ao mesmo tempo, surge uma nova maneira de ver as coisas - na verdade de não ver - o universo turvo, ao contrário do que poderia se pensar, é mais bonito, as mulheres, por exemplo, principalmente. sem lentes, inclusive as do amor, todas são belas. não há imperfeição. vê-se, ou melhor é tudo uma programada ilusão de óptica. a loura fatal, onde de loura apenas a tintura que lhe corrói o tônus, a depender dos nossos reflexos ressurge teen.

na verdade, descobri este novo dom da visão por esquecimento dos óculos. como sem eles apenas perco os detalhes, mas continuo tendo a visão do todo, arrisquei dirigir sem eles. e aí não deu outra: um mundo novo abriu-se para mim.

mulheres feias passaram a se sentir atraentes; homens carrancudos, não mais que de soslaio tornaram-se simpáticos, grupos grotescos tornam-se pitorescos e assim por diante. e de certa maneira, torno-me um mensageiro da felicidade, pois assim cego, nada me espanta e a tudo reajo com a naturalidade da suspensão do susto pela ausência da percepção da forma esvaziada nos seus contornos mais devidamente preenchida pelas expectativas de outras ânsias.

quem assim olhado, passada a sensação da impossibilidade internalizada do primeiro instante de recusa pelos olhos de quem sempre enxerga o mesmo, guarda lembrança para o resto dos dias destes. e, como dizem os especialistas em serem convocados para redundar nos tele-jornais , a autoestima aumenta e o bem estar se espalha, deixando todo mundo mais feliz neste desfoque acertado.

e como a felicidade é um tipo de crack de efeitos e duração ainda mais devastadora , não é de surpreender que isto vicie. dá mesmo vontade se sair sem óculos a todo instante, para ver a vida mais feliz. um vício dentro de outro chamado vida, do qual também é muito difícil largar por vontade própria, de maneira que vamos procurando enxergar o que nos mantém vivos mesmo por desfoque os mais ou menos que vislumbramos enxergar.

e assim, apesar de todos os desenganos, que os acertos ou enganos da nossa visão boa ou má sempre acabam por nos trazer ou para aqueles para os quais depositamos nosso olhar mais profundo ou equivocado, esta falta de visão ampliada nos conduz a amores cegos, cujo melhor é que não tateiam no escuro como fazem aqueles despertados pelo melhor da nossa visão.

no fundo, no fundo da retina, olhamos e sabemos que não está lá. nem sequer nos nossos olhos. é algo muito antes dela, também da formação da lágrima, e até do brilho que se recusa a nos espelhar como realmente somos em nossa mais completa escuridão.

Now playing: The Fevers - Seu Olhar (Temptation Eyes) via FoxyTunes

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